Memórias da Castro de Ricardo Pais

Manuel Maria Carrilho*

Nos 100 anos do Teatro São João que agora se comemoram, foram muitas as ocasiões e circunstâncias em que tive o prazer de o frequentar. Mas naturalmente que destaco os cinco anos, de 1995 a 2000, em que tive o privilégio de, como ministro da Cultura dos XIII e XIV Governos Constitucionais, estar ligado de um modo muito próximo à vida do Teatro Nacional São João.

Foram anos únicos e que, para mim, se ligam a uma cumplicidade quase diária com o seu então director, Ricardo Pais, a meu ver não só o encenador português mais talentoso das últimas décadas, mas também o mais desassombrado, ousado e empenhado artista que conheci a dirigir profissionalmente uma estrutura – sempre pesada, como o são quase todas neste país – do nosso quase inexistente Estado das Artes, tornando assim tão visível como inequívoca a mediocridade da maior parte dos “gestores” a quem o nosso provincianismo em geral entrega a administração das instituições da cultura.

Foi pois naturalmente num trabalho de Ricardo Pais que recaiu a minha escolha da mais “importante ou memorável” obra destes 100 anos do Teatro São João. Não foi a primeira (a Luísa Costa Gomes foi – sem surpresa – mais rápida do que eu), mas tantas o podiam ser… E eu gostei muito da Castro, nas suas duas versões, embora tenha ficado muito “agarrado” à primeira, com uma extraordinária Maria de Medeiros, com que o Ricardo nos surpreendeu ao escolhê-la para o papel de Inês de Castro.

O que me ficou na memória desse espectáculo, pergunta agora o João Luís Pereira no seu amável convite para eu escrever este breve apontamento. Como sempre, ficou a memória do que se consegue inventar a partir dos fragmentos de que ela sempre é feita, até porque não há memória humana que não seja a das nossas mais ou menos racionais, mais ou menos emocionais, reconstruções mentais.

Com um cenário assente em boas intuições e em figurinos inspirados de António Lagarto, com uma mão cheia de magníficas representações, com uma Maria de Medeiros – repito – surpreendente, com uma apurada coreografia de Né Barros, com um Vítor Rua que conseguiu o registo musical certo, com uma excelente colaboração videográfica de Fabio Iaquone, Ricardo Pais deu à Castro a forma e a dinâmica que eu, seu leitor assíduo desde os meus tempos de liceu, estava longe de imaginar ou sequer de pressentir: uma magnífica obra sobre o poder e as paixões, sobre a força e a fragilidade do desejo contrariado, que ao mesmo tempo que tudo arrasta a tudo se expõe. Mas também sobre a emergência, tanto da razão de Estado como do Estado da razão – ou melhor, das razões –, numa tensão pouco notada mas que, com cambiantes várias, resiste e persiste até aos dias de hoje: a do jogo das múltiplas racionalidades que atravessam todas as vidas.

Leitura certeira, uma vez que se sabe que António Ferreira foi um leitor atento de Maquiavel e das perspectivas políticas que ele abriu, ligando pela primeira vez de um modo explícito as ambições do poder e as paixões dos homens, fazendo delas o centro de um inovador entendimento do político.

Ricardo Pais conseguiu dar uma visão de toda esta complexidade, com uma cuidada selecção do texto, com um arriscado e subtil jogo de destaques/apagamentos de diversos momentos e das diversas personagens da Castro, fazendo de Inês e de D. Afonso IV duas personagens absolutamente únicas, cujos diálogos nos transportam para o âmago trágico dos temas que referi.

Mas não é só Maquiavel que é preciso ter presente para entender a Castro e Ricardo Pais também teve esse ponto bem em conta – é preciso “integrar” a tradição romana da argumentação, nomeadamente a obra de Séneca, que A. Ferreira explorou com indiscutível destreza e que Ricardo Pais coloca com forte intensidade no centro da Castro, fazendo do diálogo de D. Inês com D. Afonso IV um momento sublime de argumentação persuasiva, que se traduz na conversão (embora fugaz) do rei.

É isto, hoje, a minha memória da Castro – isto, acompanhado da leitura renovada de um poema de Ruy Belo de 1973 que Ricardo Pais assumiu, creio, como um impulso já longínquo mas decisivo para se lançar na aventura desta magnífica encenação:

Eu canto os amores e a morte a apoteose e a sorte
dessa que tão horizontal em pedra jaz e esse pedro neto desse trovador de quem se diz
que sempre dom dinis fez o que quis
O círculo amoroso cerca a sociedade
mas por fim a cidade é vencedora do amor
e há serenidade na cidade
Na igreja abacial de santa maria de alcobaça
os que em vida se amaram para sempre se juntaram.

Termino, fazendo – neste momento do seu primeiro centenário – votos de longa vida para o Teatro Nacional São João, com um futuro de qualidade à altura dos seus melhores momentos. Estou certo de que assim será.

*Filósofo, Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Ministro da Cultura entre 1995 e 2000.

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7 Março – 13 Abril 2003
Teatro Nacional São João

Castro

de António Ferreira encenação Ricardo Pais
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna