Isto é África, mas não é só África

Helena Genésio*

Os povos africanos são hoje os únicos que podem tocar de perto a essência do trágico. Heiner Müller

A Medeia de Eurípides revista por um autor contemporâneo – Max Rouquette – ganha uma inesperada actualidade em África, quando Jean-Louis Martinelli, levado pela intuição de Heiner Müller, a decide encenar com actores africanos do Burkina Faso.

O sentido da tragédia antiga encontramo-lo hoje em África. Medeia abre um espaço de interrogações. Medeia transforma-se numa tragédia intemporal. Fala-nos de um tempo antigo, um tempo outro, mas também da actualidade, do nosso tempo. Medeia é uma tragédia universal mas também local – Medeia levanta questões de direito e questões de poder; questões de pertença e questões de exílio.

A versão de J.-L. Martinelli traz a Medeia a força e a vitalidade dos homens, das mulheres, do coro e das crianças; todos actores desta tragédia contemporânea – a tragédia dos povos africanos.

O espectáculo – Médée – foi apresentado nos Arcos de Miragaia, num imenso armazém amplo, vazio. A entrada neste espaço transmite ao público uma sensação de estranheza, de algum desconforto, de abandono, evocando de imediato a imagem de ambientes áridos, desabitados.

O espaço evoca outros lugares; lugares sem nome habitados por milhares de deslocados africanos que fogem à guerra, ao conflito, à perseguição, à morte. Lugares chamados campos: campos de deslocados, campos de refugiados, campos de apátridas. Lugares de passagem onde milhares de africanos reduzidos à condição de apátridas e de nómadas pousam, apenas porque reivindicam a sua existência e exigem respeito pela sua condição humana. Lembremos os milhares de africanos estacionados às portas da Europa em lugares inóspitos… lugares que poderão ser os últimos lugares da errância destes africanos sem nome, como as portas de Corinto foram o último lugar da vida de errância de Medeia.

No limite da cidade, Medeia, a pária, ocupa um espaço árido, vazio.

Entre estes dois extremos, a cidade e o vazio, uma frágil cobertura delimita o espaço/universo onde vive Medeia. Este espaço – terra de ninguém – pode ser a periferia de uma cidade africana, mas também qualquer um dos muitos campos de deslocados/desalojados de África fugidos da guerra, da violência, da fome, dos tiranos, dos grupos extremistas. Esta Medeia negra ganha novos contornos e novos significados.

A voz trágica de Medeia canta a poesia da errância e do nomadismo, aliando-se ao espaço vazio, infinito e imenso do deserto. O tema da errância e do vazio está presente em toda a peça. Como presente está a luta das mulheres pela sua dignidade, pela igualdade de género e de oportunidades; a luta contra a violência e abuso sexual, a poligamia, o abuso de poder; a necessidade de a mulher ter palavra, ter voz, ser considerada não objecto mas sujeito.

Médée é uma peça de mulheres: Medeia, a ama, o coro das mulheres. Todas do mesmo lado nesta luta intemporal pelos seus direitos. Os homens usufruem e exibem o poder ou querem tê-lo, como Jasão, seja por que preço for. As mulheres, por seu lado, para terem uma certa autonomia desenvolvem uma energia considerável. Esta energia emerge da força anímica de Medeia e do coro feminino que a acompanha.

A presença do Coro faz também a ponte com a tragédia grega; o autor coloca na sua boca poemas a que chamou salmos, que mais não são do que o prolongamento do tema dos diálogos: salmo dos caminhos, salmo do estrangeiro, salmo do abandono, salmo da angústia, salmo do nada. Salmos destinados a serem cantados, como na tragédia grega. Cantados por um coro de mulheres em Bambara, língua do Sahel.

Este grupo de mulheres canta na língua da tribo autóctone, da qual apenas retiramos a musicalidade, a forma sonora, a melodia. Esta liberdade linguística confronta-nos com a presença da língua estranha, onde o significante é mais importante do que o significado, fazendo-nos sentir e tomar consciência da presença do outro e provocando um impacto emotivo junto do espectador. O diálogo entre diferentes sonoridades apresenta o espectáculo como algo de estranho, diferente, estrangeiro. O actor estrangeiro abre o espectro sonoro da língua de acolhimento, enriquecendo-a com o seu sotaque, apresentando-se como portador de um discurso político.

O facto de serem actores africanos a apresentarem Médée na Europa faz emergir da tragédia uma actualidade gritante. Os actores africanos dão à tragédia uma nova dimensão, fazendo extrapolar o seu sentido para lá do espaço e do tempo em que acontece, provocando estranheza mas também reconhecimento – isto é África, mas não é só África. Nesse aspecto, a tragédia ainda tem/pode ter espaço e fazer sentido nos nossos dias.

*Programadora.

_

20-22 Maio 2011
Arcos de Miragaia

Médée

de Max Rouquette
encenação Jean-Louis Martinelli | coprodução Théâtre Nanterre-Amandiers**, Napoli Teatro Festival Italia** | Odisseia: Teatro do Mundo

_

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

_

fotografia João Tuna