Salvo para o espectador que ignore esse infausto acontecimento da história do teatro, O Doente Imaginário não é só a comédia da hipocondria e do egocentrismo mas, de cada vez que é levado ao palco, um prólogo da morte de Molière, ocorrida horas depois de ter representado o papel de Argão, crê-se que já em sofrimento, na noite de 17 de Fevereiro de 1673. A negação do sacramento da confissão, que Molière terá pedido no leito de morte, e, post mortem, a recusa de uma cerimónia conforme ao rito cristão, tornam a ocorrência ainda mais funesta. É como se esta comédia tivesse perdido o direito a sê-lo. Afinal, o final feliz, obra de um médico imaginário e de uma morte imaginária, não passa de um festejo passageiro: é Molière quem vai morrer dali a nada. Como uma lasca, o espectáculo da morte vera do autor e actor veio cravar-se no espectáculo teatral e aí permanece cravada desde então. A cada mise en scène, a ilusão dramática aparece-nos brutalmente destroçada.
Tal foi o estado de espírito com que assisti a O Doente Imaginário, no Teatro Nacional São João, em 2012. Caído o pano, Molière iria morrer de uma “fluxão no peito”, pelas 22:00, na sua casa da Rue de Richelieu, olhado por duas senhoras de fé e um gentilhomme de nome Couton.
Em que terá pensado Molière, no final da representação, ao aperceber-se de que ia morrer, possivelmente ainda vestido de Argão, doente imaginário que ele criara para satirizar a doença dos médicos e as ratoeiras do ego? Ter-se-á sentido atraiçoado, vítima da inesgotável imaginação da morte ou da vingança da medicina? Ter-se-á arrependido, naqueles momentos, de não ter tomado os remédios de que troçara?
O espectáculo levado à cena pelo Ensemble, com encenação de Rogério de Carvalho, foi de uma rara e exemplar solidez: as manhas sorumbáticas do Argão de Jorge Pinto, a saúde exuberante, quase subversiva, corporizada pela Tonieta de Emília Silvestre, a rigidez hilária dos Diaforéticos. Porém, o que mais vividamente retenho na memória, passados estes anos, é a cenografia minimal de Pedro Tudela, a puxar a Mondrian pelas formas, tons e extrema depuração. O tapete de um escarlate voluptuoso, recortado nas trevas, estendido no tablado, única área que as personagens pisam nas suas andanças, com duas ou três cadeiras por único adereço, deixa-se ler simultaneamente como figuração da doença – do coágulo que mancha, do sangue que alastra – e como signo vitalista, hemofilia da imaginação, ou até selo da “qualidade do organismo” que não puderam vencer todos os purgantes e clisteres do Doutor Purgário.
Na verdade, creio que a doença imaginária de Argão é uma doença da alma. E a doença da alma, como se sabe, é o corpo. O amor ao corpo. Ou o desprezo pelo corpo.
Mais que medo da morte, Argão tem pena de si próprio. Com efeito, poucas coisas há tão risíveis quanto a autocomiseração.
Mas, se a doença pode ser imaginária, a morte é o limite da imaginação. Aqueles que melhor riem da morte, como Molière, sabem, à semelhança do mais vulgar dos homens, a quem pertence o riso derradeiro. Dali a pouco, Molière ia morrer. Mas o que ele dissera, o que ele fizera dizer, tinha tido efeito “sobre a realidade das coisas”. Ao contrário dos remédios do Doutor Purgário.
*Escritor.
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7 Junho – 1 Julho 2012
Teatro Nacional São João