Obrigado, mestre Molière

AUGUSTO SANTOS SILVA*

Vi O Misantropo a 9 de abril de 2016. Sei a data porque há muitos anos que registo em cadernos, entre outras coisas, os espetáculos que vejo. Maneira de preservar a memória, que facilita a resposta a desafios como este: escolher uma peça que me tivesse marcado, entre as que vi no Teatro São João.

Seria um sábado, não fui confirmar. Esse é outro hábito, que me ajuda a viver o melhor que posso: aproveitar os fins de semana em casa – isto é, no Porto – para me manter a par da cena cultural da cidade. O São João é um dos lugares frequentados, de tal modo que seriam incontáveis os espetáculos de que já pude retirar proveito.

Escolhi o texto de Molière por várias razões. Uma tem exatamente que ver com o texto. Outra rotina minha é ler o texto da peça, antes ou depois do espetáculo. Fi-lo. À primeira vista, a misantropia poderia parecer um tema cristalizado no tempo, motivo de uma comédia seiscentista de costumes, bem conseguida mas talvez presa ao seu contexto. Não. O texto e a encenação mostravam bem a atualidade e a riqueza literária e social da peça de Molière: a sua condição de clássico, aquele que, como tão cabalmente mostrou Italo Calvino, vive nas múltiplas leituras que vai permitindo ao longo dos tempos.

Recordo a encenação, enxuta, contida, de Nuno Cardoso, que precisamente fazia viver o texto, que “servia” Molière e convidava os espectadores a ouvi-lo e segui-lo. Já não me lembro de quem assinava a cenografia, mas sei que é uma das imagens de marca do São João a qualidade também rica, no seu minimalismo, das cenografias. Seria o caso, nesta coprodução? Interpretação competente, diria, a esta distância, ou seja, tudo convergindo para pôr em destaque o dramaturgo e a sua arte imorredoira.

Escolhi esta produção de O Misantropo também por duas razões – um pouco mais externas à obra literária propriamente dita, mas essenciais na organização e no serviço público de um teatro nacional. A peça resultou da parceria entre várias instituições públicas, nacionais (o São João) e locais (o São Luiz, o Centro Cultural Vila Flor e o Teatro Viriato) e a companhia Ao Cabo Teatro; e a amplitude dos parceiros permitia um circuito de itinerância alargada, passando pelo Porto, Lisboa, Guimarães e Viseu. São dois aspetos que valorizo muito, como investigador sobre os públicos da cultura e como teórico e prático das políticas públicas; dois aspetos que foi muito difícil fazer enraizar no ambiente artístico português (di-lo um antigo ministro da Cultura), mas que felizmente são hoje óbvios, para isso tendo contribuído muito, entre outros, as recentes direções do São João.

Não sou crítico, nem me é pedida uma crítica. Para além do caderninho que me ajudou a situar O Misantropo, sirvo-me apenas da memória. Deixem-me, pois, pôr as coisas assim: nesse como em muitos outros sábados, ao longo de anos, fui ao São João ver teatro e gostei muito. Gostei de revisitar o texto, gostei da encenação, da interpretação e das escolhas de produção e apresentação que lhe subjaziam. Nesse abril de 2016, a minha vida estava centrada numa luta diária para explicar à Comissão Europeia que, sim, Portugal ia mudar de política económica e orçamental e que, não, isso não significava incumprir as regras da Zona Euro; e que, sim, podiam confiar em nós e que, não, não era a Comissão Europeia mas o Parlamento português que determinava a sorte da governação. Já tinha começado a exaltante, mas titânica, campanha pela eleição de Guterres para as Nações Unidas. Era preciso gerir um pequeno incidente no seio da CPLP antes de ele se tornar um problema. Etc. Naquelas duas horas de peça, beneficiei desse intervalo de prazer inteligente que, a meu ver, a cultura proporciona melhor que qualquer outra coisa. Por isso, obrigado ao São João. Obrigado, Ao Cabo Teatro. Obrigado, encenador Nuno Cardoso. Obrigado aos atores, de que recordo a Joana Carvalho, o Luís Araújo, o Pedro Frias, entre os demais. E, sobretudo, obrigado, mestre Molière!

*Professor universitário, sociólogo, político.

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7-24 Abril 2016
Teatro Nacional São João

O Misantropo

de Molière
encenação Nuno Cardoso
coprodução Ao Cabo Teatro, São Luiz Teatro Municipal, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Viriato, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna