O silêncio
Passados estes anos, a ressonância mais forte é a do silêncio ensurdecedor entre várias paredes, a quarta incluída. A da suspensão do sentido pela intensificação dos sentidos. Uma febre fria de sábado à noite, aferida por gestos múltiplos, alguns deles nada dançantes. Várias intimidades devassadas pelo espectador já emancipado, confortavelmente instalado no desconforto do seu voyeurismo actuante. A força dos corpos falantes na expressão muda, a ferocidade das cenas ad infinitum, quadros simultâneos e sucessivos, muito vivos, a fotografia animada, a anima em palco, o sussurro inacessível dos segredos que (n)os movem. Nada mais performativo, portanto. Uma noite agónica de grandes e pequenas agonias e angústias, todas reveladas na topologia implacável de um lugar-não-lugar acessível por uma janela indiscreta muito especial.
A janela
Era pelas janelas que se entrava em cena: não o actor, mas o espectador, violentando a certeza dos limites entre espaço íntimo e espaço público. E as janelas eram quase magrittianas, de certo modo, pois através delas o espectador experimentava uma radical crise da (de) representação, ao invadir um mundo tão privado que nem sequer era verbal ou visualmente configurável. Spectator in fabula. Seria um lugar-comum sugerir que aquelas janelas concediam acesso a uma dada dimensão do invisível, mas talvez faça sentido ficarmos mesmo com o lugar-comum, já que só ele, neste caso, poderá dar conta da força de uma atmosfera, das suas sugestões e indícios, daquilo que não quer deixar de ser da ordem do subliminar: seriam só seis personagens em busca de um espectador?
A casa
Alguns anúncios publicitários prometem “uma casa para a vida”. Não seria este o anúncio de Saturday Night, mas um dos maiores motivos de impacto da peça resultava justamente desse vínculo entre a casa e a vida, como se naquela casa de 90 minutos tivesse cabido a vida toda, as vidas todas, com as suas lutas, receios, ansiedades, expectativas e esperanças. Não era uma casa portuguesa, com certeza, mas poderia ser uma casa portuguesa, com toda a certeza. Em certa medida, era face a um problema sério de habitação que nos encontrávamos – não propriamente originado por questões arquitectónicas, de engenharia civil ou de urbanismo, ainda que tudo naquela casa evidenciasse um cuidado cenográfico meticuloso com a criação de um ambiente (doméstico e mental). Tratava-se, isso sim, de um problema de habitação existencial e afectiva, de entrada fácil e com poucas saídas evidentes ou tranquilizantes.
A fuga
Estes anos passados, a inabalável recordação do trabalho de Matthew Lenton e do seu Vanishing Point: na ressonância beckettiana mediada pelo trabalho de Herbert Blau, o ponto de fuga das fronteiras entre natureza e cultura, entre linguagens artísticas, entre a vida privada e a exposição pública, entre intimidade e espectáculo, entre espaço cenográfico e tempo (pós-)dramatúrgico. Em síntese, a encenação do dúbio, a concretização da sua performatividade latente. Há quem chame a tudo isto imagens-limite. Para o espectador, com efeito, o jogo perverso consistiu em ser levado a praticar a mais pura visão, essa visão tão pura que permitia escutar o que nem as palavras ousavam proferir, quer dizer, a praticar uma visão tão pura que criasse disponibilidade para acolher a mais perfeita expressão do pathos hipermoderno, esse que talvez só a extrema solidão explique.
*Ensaísta, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
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15-18 Setembro 2011
Teatro Nacional São João
Saturday Night
conceção e direção Matthew Lenton
coprodução Vanishing Point, Centro Cultural Vila Flor – Teatro Oficina, São Luiz Teatro Municipal, Tramway, Compagnia Teatrale Europea, Teatro Nacional São João | Odisseia: Teatro do Mundo
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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna