Relembro as traves em madeira da casa e a bela encenação despojada, de cujos parcos objectos resulta um ambiente pobre, atávico e religioso. A acção em cena fica subordinada ao uso e ao costume, à tradição, à religião, à família patriarcal, à submissão da mulher. Estes quadros referenciais e repertórios de acção amalgamam-se, produzindo significações que, por sua vez, convocam horizontes de sentido. Entre estes e o campo da experiência é (sempre) o tempo que estrutura a peça. Esta organiza-se em torno das tensões entre os universos feminino e masculino, entre o corpo e o desejo e a moral e os costumes, tanto quanto em relação ao tempo marcado pela promessa. Um tempo suspenso – porque a promessa introduz a suspensão do tempo – em consonância com o regime político autoritário e isolado, com a ausência de liberdade, a tradição mesquinha, a sociedade fechada e, em particular, com a ordem da necessidade sem lugar para a emancipação, para o novo e o imprevisível.
O futuro, como a acção ou a iniciativa, está capturado pela promessa. A promessa é futuração que elimina consequências e circunstâncias imprevisíveis, porque ela se cumpre num tempo que se quer necessário. Fazer uma promessa é encerrar o futuro no presente e, deste modo, erradicar a novidade, a liberdade, a contingência e, desta feita, a própria vida. Logo, o universo que nos é proposto nesta intensa peça é irrepreensivelmente coerente: nem liberdade nem futuro para construir.
Maria do Mar, a mulher subjugada, cuja situação é ditada pelo aprisionamento em que o marido a colocou a ela e a si próprio, não se conforma – e Joana Carvalho expressa-o com veemência em cena –, mas não escapa a esse destino. O marido, José, encontra-se amarrado pelo futuro que enunciou para si próprio: a promessa. Esta, no quadro do casamento, instituiu um continuum presente em privação e abafou o corpo e o desejo, aos quais Maria do Mar não aceita renunciar.
Porém, a fenomenologia da promessa (nas suas formas de contrato, voto, juramento) não exclui não manter a promessa feita. É da própria natureza da promessa poder não ser mantida. Mas José mantém-na, tendo ficado aprisionado na identidade que se auto-atribuiu. Paul Ricoeur, em Soi-même Comme un Autre (1990), coloca a capacidade de prometer, e a possibilidade de manter a palavra, como fenómeno de desdobramento (saindo da primeira pessoa), ou de reflexividade de si, numa outra identidade (identité-ipséité). José está preso na obrigação moral de manter a palavra e será impelido à destruição – a promessa instituiu um devir de si como um outro. Sem liberdade graças à promessa, assim permanecerá depois, em resultado do crime que virá a cometer.
Hannah Arendt, em The Human Condition (1958), liga o perdão à promessa, que são da ordem da relação com o outro. O perdão desliga, porque alivia o fardo por vezes esmagador das acções cometidas no passado; a promessa vincula, compensando a imprevisibilidade e a incerteza do futuro. Poderia o perdão libertar da promessa, mas a Bernardo Santareno importou, de modo inabalável, confrontar-nos com um universo de ausências: de futuro, liberdade, emancipação e prazer. A relação de José com Maria do Mar é uma não-relação. Poderia ter sido da ordem da vinculação, implicando acção e destinatário (prometo amar-te, prometo levar-te comigo…).
Ora, a promessa não captura somente o tempo, como também a memória. A promessa dita a irreversibilidade do que aconteceu e a lembrança – José e Salvador, o pai, ficam irremediavelmente ligados ao acontecimento trágico no mar. Logo, também Salvador – o notável Jorge Mota – fica retido no passado. A promessa interdita o esquecimento, quando a lógica da vida compreende, igualmente, o direito a esquecer. Na peça, há esse poder da mulher que está disponível para o esquecimento, para o prazer, para a liberdade, mas, no final, é fatalmente o statu quo que prevalece e que impede a abertura a um (outro) futuro.
Em 2017, estive na estreia desta admirável encenação e impressionante representação de A Promessa, com a convicção (e comoção) de que o meu pai assistiu a esta peça, em 1957, porque estimava Bernardo Santareno, o Teatro Experimental do Porto e António Pedro. Senti que revisitei um texto intemporal.
*Reitora da Universidade Lusófona do Porto.
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16 Novembro – 3 Dezembro 2017
Teatro Nacional São João