Humanos muito embora

Bruno Monteiro*

À época da sua apresentação no Teatro São João, a peça Purificados já trazia atrás de si 10 anos desde a estreia, cobrindo a profunda reconversão da apreciação crítica e das posturas “espectatoriais” que a obra de Sarah Kane tinha encontrado de início. Terá sido com essas expectativas que encarei a peça então. Hoje, o pretexto para esta rememoração surge de uma encomenda. O exercício encomendado da recordação tem sempre um certo grau de artificialidade. Diante da constatação da impossibilidade absoluta de recuperar a espontaneidade da noite de teatro, torno essa constatação o tópico central deste texto. Pois perdura em mim, afinal, uma obsessão com os significados e sensações atribuídos a uma peça de há 10 anos, uma presença latente e impalpável que me assombra sem alcançar exprimir-se. Trago comigo, portanto, um fantasma. Da desistência em perseguir o sentido pela especulação adentro, tiramos enfim um motivo de dúvida que interroga o teatro como modalidade particular da existência humana. Por uma curiosa inversão das intenções originais, em vez de pensar a peça a partir de nós, pensamo-nos pela peça. Em vez de comentar a peça, permitimos que a peça seja um comentário a tudo o que nos torna humanos.

O que resta do teatro quando desaparecem as convulsões sentidas pelo espectador durante o espectáculo? Mais do que tema escolástico, a questão resume o drama essencial do espectador em busca do seu passado. Todos os espectáculos são inextricáveis da sua condição de transiência, um atributo que tem alimentado, para nos atermos apenas a opções extremas, tanto as tentativas desesperadas de desmentido colectivo do esquecimento, que vão da incessante repetição até à ritualização (ou ainda à institucionalização num “cânone” ou “reportório”), como as entusiásticas celebrações da natureza excepcional, única ou inimitável do “instante vivido”, espécie de “privatização” egotista da experiência do espectador.

Não vamos dirimir as alternativas aqui apresentadas usando a memória instável que conservamos ou que podemos agora forjar da peça Purificados, na sua encenação por Krzysztof Warlikowski. Mais ainda nas circunstâncias de um “teatro da sensação” (Aleks Sierz), em que se choca e se obriga o espectador a desafiar as suas atitudes convencionais de assistente passivo pela exposição sem eufemismos à violência e pela transgressão das estremas da degradação humana, esta ligação visceral ao complexo sensorial da peça só poderia ser recuperada pela sua reactualização. A memória não é dada. Não é um “bem disponível”. Pela recordação, participamos de um trabalho de construção que parte de uma “intenção presente”,1 o que torna improcedentes os debates sobre os riscos de simulacro do passado, pois se esvaiu a noção de uma memória mais “genuína” do que outras, e espúrias as alegações sobre o interesse de isolar a experiência “original”, pedra filosofal dos espectadores de todos os futuros. A memória é um artefacto, melhor: uma artefacção. O teatro e a memória compartem, portanto, uma idêntica condição de transiência; subsistem apenas nos seus perpétuos movimentos de (re)criação.

Escrevi que a peça seria uma descrição do que nos define como humanos. Humanos muito embora, acrescento agora. Pois da peça conservo, dentre um pecúlio de imagens esparsas e desconexas, o trauma residual que perdura das cenas de sofrimento e opressão, alternado com os testemunhos de amor que sobrepujam uma atmosfera de pesadelo como uma réstia de humanidade que subsiste entre ruínas. A partir da “dose concentrada de crueldade provocadora” (Gruszczynski) depositada sobre o palco do teatro, extrapolamos o nosso próprio desamparo e labilidade diante do teatro do mundo. Vistas agora de maneira extemporânea, estas supostas evidências da inutilidade da vida humana podem ser, todavia, invertidas por uma aproximação à leitura hegeliana da morte e do desejo, concebidos como “estados de desaparição”. Sem paradoxo, a opulência da morte nesta peça pode bem mais equivaler a uma instigação para o sentido da vida. Nas palavras de um primoroso comentador hegeliano, o escravo colocado diante da morte, “senhor absoluto”, pode libertar-se do seu medo, ainda que “trema em todas as profundezas do seu ser”.2 Da mesma maneira, as provas de amor que suscitam a virulência dos mecanismos de “normalização” dos corpos e das mentes apresentados durante a peça, são ainda a vinculação recíproca mais saliente de constituição da humanidade (“apareço para mim no outro e o outro aparece para mim como eu mesmo”)3 – e um resgate da pura bestialidade.

1 Gaston Bachelard, La dialectique de la durée, Paris, PUF, 1950, p. 57.
2 Jean Hyppolite, “Situation de l’homme dans la phénomenologie hegelienne”, Figures de la Pensée Philosophique, Paris, PUF, 1991, p. 83.
3 Idem, Ibidem, p. 85.

*Sociólogo, Instituto de Sociologia – Universidade do Porto.

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5+6 Dezembro 2008
Teatro Nacional São João

Purificados

de Sarah Kane
encenação Krzysztof Warlikowski
produção Wrocławski Teatr Współczesny

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna