Relva sintética. Uma mesa de jardim. Um guarda-sol. Três corpos.
Nada fazia adivinhar o vendaval.
Na memória que me cunha, e é a partir dela que convoco e reconstruo a experiência, nada é objectivo e linear. Tudo está e estará impregnado de espanto. Terá laivos pontuais de êxtase e pedaços de ideias levantadas, cuspidas e deixadas ao acaso. Não há harmonia nem concerto.
Apenas o lastro do furacão.
Poderemos intuir que o teatro rasgou, fulminado; que o corpo explodiu para além dos limites visíveis da pele; que o cérebro expandiu cosmos afora, devolvido à matéria.
Estávamos a 25 de Junho de 2009.
Talvez eu não estivesse pronta para o que aconteceu.
Ou talvez estivesse desde sempre pronta para o que aconteceu.
Falamos de desejo, sim.
De inspiração, por certo.
De transformação e ressignificação, muito.
Estamos a 25 de Junho de 2009.
Provavelmente chego em cima da hora. Muito provavelmente sento-me esbaforida. Certamente ouço “Bem-vindos ao Teatro blá-blá-blá”.
Um homem e uma mulher, pelos 35 anos, de contornos esguios e firmes, descalços, reproduzem gestos quotidianos. Citação do universo Barbie e Ken.
Outro homem, pelos 60, de contornos flácidos, vem à boca de cena. Veste apenas uma cueca XXL branca.
A velhice é um vexame… – penso.
Tremor: Quem disse ISTO!? A-velhice-é-um-vexame?! Como assim!? QUEM disse ISTO?!
Súbita e intensa vergonha alheia do que me ocupa, pequeno momento em que sou confrontada com e engolida pelo inesperado. Eu, Catarina, em 2009, território físico e mental colonizado pelo ideário Mattel. Lindo… que vergonha…
Frágil e seguro, alheio a tudo isto, ele, o velho intérprete que me confronta e vexa, na integridade seminua da sua presença, permanece tranquilo e consciente, convidando-me a outras geografias.
Eu, tentando manter-me à tona do preconceito, sigo-o como posso, encandeada pela cueca XXL.
Ouço frases sobre a perda e o ganho, sobre a vida vivida e a vida desejada, sobre ascensão, miragem e declínio.
Algures, o homem de corpo esguio investe numa sequência de chão que o afasta do estado humano, transformando-se numa espécie de semi-humano-verme-ser-quiçá-intra-uterino. O virtuosismo da técnica ante a simplicidade do gesto é impressionante. Mais do que impressionante, magnético, a minha cervical inicia pequenos movimentos empáticos. A voz do narrador transforma-se em música de elevador.
Debato-me agora com o íman daquele corpo, algures entre o des-re-membrado, e sinto-me estranhamente próxima. Fulgor.
Talvez eu esteja já descalça sobre a relva sintética.
Talvez este tenha sido o início de um vórtice, de uma epifania, de um vislumbre.
Juventude e velhice. Passado, presente e futuro. Memória e ficção. Sintético e orgânico. Víscera e forma.
A partir de agora, estamos no olho do furacão.
Os objectos, as presenças e as ideias projectam-se em miragem.
A verticalidade como um permanente recomeço
Desejo e colapso
Beleza e imperfeição
O chão como eterno retorno
Queda e voo e voo e queda e queda e voo e voo e queda e queda e voo
Corpos que discursam
Ideias que pulsam
Corpos-ideias que vibram
Precipício
Silêncio
Nascimento e morte
Devir
Choro e êxtase
Sagração da Primavera
A integridade de quem dança o fim do mundo em cuecas
Comoção
Encontro
Corpo – embate; corpo – colo; corpo – boca.
Bocas
Boca à boca. Reanimação.
Beijar-te-me-nos
A violência do afecto
A violência do desejo
A violência da rotina
Mecanização.
Corpo-objecto
Corpo-pulsão
Brinde
Busca
Luz
Começo
Não me lembro de como Le Jardin terminou.
Talvez nunca tenha terminado.
Talvez tenha sido somente um princípio.
Simultâneo black out e clarão.
*Atriz, encenadora.
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*25 Junho 2009
Teatro Carlos Alberto