Como espectadora, sou um verdadeiro desastre. Ao fechar das portas já só resta meia de mim sentada na cadeira. O resto anda a esvoaçar na sala, e isto é se não saiu mesmo para passear na rua. Com os reduzidos meios que ficam, compreenderão que não hei-de ter muito a dizer no beberete. Entre os espectadores absentistas, relutantes e distraídos, sentem-me logo nas primeiras filas. Quase tudo é melhor, para mim, do que assistir a um espectáculo. Absentista confirmada e reconfirmada, alheada de tudo quanto acontece, das estreias, dos eventos e dos programas culturais. Não me gabo, longe disso. Mas uma sala escura com bonecos a mexer ou figurinos em evolução cavernosa é contra a minha natureza, e se me interessa, só me interessa perceber como é que se faz, para poder fazer também, caso venha a propósito. A bossa da fruição estética por dá cá aquela palha não se me desenvolveu quando havia de se me ter desenvolvido e agora olha, já não vou lá. Não cresci para ser maduramente espectadora de coisas que me oferecem. Digo-vos isto para que se compreenda a dificuldade do contexto. Como é que se apanha uma espectadora destas? É com rebuçados, como às crianças. É pela novidade constante, pela reviravolta, pela mudança de ritmo, pelo inesperado, pelo disparate, pela beleza aguda de uma deixa, pela vitalidade que emana do que é original sem ser para inglês ver! Se lhe botam uma fala a mais, já fui. Se a cena se arrasta, pergunto-me por que raio não cortaram o pedaço. Há pessoas – felizes, essas! – que tendem a adormecer no escuro. Acordam para os aplausos e já vão com o primeiro sono despachado. Quem me dera. Gabo-me é de nunca ter adormecido num espectáculo, nunca! Por aí já podem ver que sofro. Mas não pensem que percebo à primeira a consistência formal de uma encenação ou as complexidades de um grande texto contemporâneo! Que falo com conhecimento de causa e cito entidades e intertextualidades! Estou acordada, mas a coisa não é fácil! Qualquer texto decente deve ser visto pelo menos 10 vezes. Os habituais safam-se com cinco. Quem é que tem tempo e paciência para tanto?
Deixando de lado essa aberração da Natureza que é o crítico de teatro, que vive a ver teatro, coitado, temos que o espectador ocasional ou amador e o profissional espectador estão em extremos opostos do espectro. O espectador amador vive da magia do espectáculo, o profissional perdeu a inocência há muito. E, no entanto, acontece de vez em quando recuperar a inocência e esse encontro é imponderável, supinamente maravilhoso, é do caraças. Há muito espectáculo, cada vez mais espectáculo profissional, com tudo no sítio, ele é vídeos, ele é luzes divinais, ele é som impecavelmente técnico. Actores do outro mundo. Encenadores inteligentes e bem formadíssimos. Será possível a banalização da excelência? Há outra via. É fazer. Se encontro um texto que me convoca, tenho de ou traduzi-lo, ou aplicar-lhe a tortura da dramaturgia (“torção do nariz, arrancanço dos cabelos, penetração do pauzinho nas onelhas”), para conseguir percebê-lo e amá-lo inteiramente. Se nem assim, então só me resta escrevê-lo.
Há trabalhos em que se participa, na tradução, na dramaturgia, na leitura de mesa, no acompanhamento dos ensaios, textos que sabemos já de cor e que, no entanto, ao abrir da cortina, se tornam de novo novos, o disparate tem cada vez mais sentido e a brincadeira é exactamente como a brincadeira das crianças, que reencena o novo e permanece familiar e estranha. E em que embora saibamos o que vai acontecer, não acreditamos que possa acontecer e somos sempre surpreendidos quando acontece. Experimentem fazer cócegas a um miúdo pequeno. O que ele espera que aconteça não é melhor do que aquilo que de facto acontece. Aí é que a vida brilha. Foi assim com os UBUs de Ricardo Pais, serendipitoso. De cada vez que entrava a Emília ou a Joana saltava do baú, que aparecia a pança de trapos do João, se ouvia o pequenino rei António em cima da carroça, ou a banda dos paulitos, dos altifalantes às pistolas, dos tamancos às tesouras, e infinitas outras merdras, tudo eram cócegas em várias partes do consciente e do inconsciente. E se ainda me rio quando me lembro, amigos, é porque foi realmente memorável.
*Escritora.
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16 Abril – 7 Maio 2005
Teatro Carlos Alberto