Por aqueles dias, este espectador andava com os tostões contados. É essa, regra geral, a sina do espectador que, em simultâneo, é também actor, mais ainda se está em início de funções na segunda qualidade.
Além disso, por aqueles dias, vivia e trabalhava em Braga, numa espécie de exílio feliz.
Até que, um dia, chegou a informação de uma Tempestade num antigo Cine-Teatro entretanto adquirido pelo Estado, e que estava prestes a ceder o seu corpo à engenharia, quase a entrar em obras, depois de um longo período de encerramento, para se transformar em Teatro Nacional. Tratava-se de uma produção “da casa”, com gente principalmente do Porto que, apesar de estar tão próxima, eu apenas vagamente conhecia.
Simultaneamente, por aqueles dias, vinham a Braga, a um congresso de literatura, um grupo de amigos ao lado de quem cresci, professores em início de carreira e espalhados pelo país que, aproveitando a ocasião, matavam saudades uns dos outros à boleia desse congresso, e eu com eles, mesmo que trabalhando noutra dependência da vida.
Foram dias gloriosos, eu cicerone bracarense e eles a deixarem-se guiar. Na qualidade de cicerone, propus uma ida a essa Tempestade portuense, curioso do espaço, do espectáculo, do projecto. Alguém comprou os bilhetes. Os mais caros da minha vida até então, pobre actor confrontado com os salários dos meus amigos professores. E a minha experiência enquanto espectador do Teatro São João começa aqui.
O teatro estava esgotado. Ou parecia. Entrámos e a primeira impressão que guardei foi a da profundidade dos tapetes. Estranhei a maneira como os pés desapareciam no tapete alto, quase uma massa líquida que os pés penetravam até encontrar um outro chão, mais sólido, por baixo daquele. Um território quase pantanoso, feito não de areias mas de pêlos movediços, que ameaçava engolir-nos inteiros, depois de quase ter feito desaparecer os nossos pés.
E, de repente, no meio de nós, quando ainda estávamos a tentar não ser devorados pelo famélico tapete, alguns dos actores, nos seus figurinos: nós na lassidão da espectativa; eles na fervura da actuação. Alguém transportava tábuas. Creio que era isso. O que indiciava obras, algures. A ilha em obras? Ou o teatro em obras? Sei que a zona dos camarins já era uma espécie de estaleiro, mas essa zona estava-nos vedada, soube-o apenas mais tarde.
Conhecia os actores de outras fichas técnicas, mas só isso. Admirava-lhes a resistência, media-me com eles, cada um no seu mundo de periferias, eu mais periférico ainda.
Lembro-me de um enorme lustre descer e percorrer, voando, um pedaço grande do palco e, creio mesmo, da sala, como um enorme bota-fumeiro, mas de luz… O teatro como uma grande catedral, pelo menos é essa a memória que tenho… E lembro-me, sobretudo, de Ariel. Que gesto. A minha memória está, ainda hoje, repleta de imagens que me chegam dessa personagem. E que personagem. Que recorte. Uma criatura multiplicada por não sei quantas criaturas que respondiam como se apenas de um corpo se tratasse, um sistema nervoso central que chegava a todas aquelas figuras muito brancas, as cabeças depiladas (calotas, creio), que potenciavam fantasticamente o efeito cénico. Organizava-se num dispositivo físico fantasmagórico, ora olhando para um único ponto, ora mudando a direcção do olhar, pulverizando essa direcção, como se estilhaçando o olhar da personagem, dividida em tantas atenções e desatenções. E a voz ciciada, sussurrada quase, um mistério potenciado pelo segredo que partilhavam, mostrando e, ao mesmo tempo, escondendo uma publicidade que, querendo exibir o falado, o retinha num espaço próximo, obrigando-nos a apurar a audição, a aproximar a cabeça do multi-emissor daquela fala, a guardar as nuances, a elocução das vírgulas, das suspensões, dos finais exclamados, de uma maneira que não esqueci, apesar de todos estes anos terem passado. Corpos juvenis vestidos de vermelho ou bordeaux, cabeças brancas explodindo nos movimentos que a Olga Roriz inventou e organizou para eles. O gesto repetido muito desenhado, ecos do gesto original, mesmo quando explodiam para as vozes das outras personagens, as amplificavam, enfatizavam, retiravam e recolocavam em foco. Extraordinário.
E, claro, Ruy de Carvalho, sobre quem todas as atenções recaíam.
Mas, para mim, foi Ariel quem ficou, de forma mais impressiva, a perfumar-me os sentidos até hoje (é engraçado como performar pode confundir-se, no som, com perfumar). Sem menosprezo, impossível aliás, pelo virtuosismo de todos os outros actores que, mais tarde, conheci, admirei e admiro.
*ator, encenador.
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16 Novembro – 23 Dezembro 1994
Teatro Nacional São João