Descrição
“Olha-me e olha-te bem.” Gil Vicente deve ser, ainda e sempre, habitável por todos nós, que vivemos mais quinhentos anos. Mestre Gil é um “texto vivo” que oferece a possibilidade de nos revermos e sonharmos. Carregado de visões, vicentinas e outras, o encenador João Pedro Vaz convida-nos a caminhar pela Floresta de Enganos, representada na “era do Senhor de 1536 anos”. Nesta que é a última comédia de Vicente, entra logo um Filósofo com um Parvo atado ao pé, o mais enigmático par de toda a sua obra. O Filósofo antecipa as figuras que vão ser enganadas pelo amor: um mercador, um homem em trajos de viúva, uma mocinha, Cupido, Apolo, o rei Telebano, a princesa Grata Célia, o doutor Justiça Maior, e até mesmo um pastor, acorrentado de amor nem ele sabe bem a quem. Por fim, uma Ventura “pelegrina” vem e resolve este amor-en-abîme. “Tudo se passa na floresta, desde sempre o espaço maior do idílio e do engano, da transformação pelo amor, ou seja, do teatro. Como num sonho de uma noite de verão (vicentina)”, adverte o encenador. “Olha-me e olha-te bem”, escreveu, num epitáfio a si próprio, aquele a quem chamaram “o mais Anjo e o mais Demónio de todos os poetas portugueses”.
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Floresta de Teatro
Nuno Meireles *
O texto vicentino da Floresta de Enganos é um problema sem solução fácil. Tem dois géneros dramático-teatrais, muitas personagens e situações que se entrecruzam, suspendem e continuam mais adiante. Tem farsa, género que vive da inversão de valores, e ainda tem comédia, que no uso vicentino é de figuras altas, dores e amores nobres. Vicente, para a sua última peça, fez um puzzle de cenas e Floresta de Enganos é um texto que vive no desequilíbrio. O trabalho e a carreira de Vicente, que acaba nesta peça, também foi desigual: trinta e cinco anos a produzir e a experimentar formas e géneros. Ora peças longas, ora breves, ora religiosas, ora profanas, para casamentos e nascimentos ou para o Natal, a Páscoa, etc. Vicente experimentou todo o teatro do seu tempo, que era também o tempo do seu público. O teatro europeu do final da Idade Média em experimentação e adaptação num mesmo palco. (Seja palco ou cena, pois no tempo de Gil Vicente não se fazia teatro em palcos como os conhecemos.) Floresta também pensa o seu tempo medieval e, de modo muito intencional, faz escolhas. Cito uma personagem de Vicente em outra peça, Divisa:
Pois que o honor do mundo presente
se dá com razão à antiguidade
Gil Vicente olha para a Antiguidade, ou para a Mitologia Clássica, e escolhe subordiná-las, subjugá-las. Na Floresta, são menos importantes Apolo e Cupido do que a Ventura. O nosso autor faz escolhas, algumas delas bem impopulares: Sá de Miranda, perfeitamente renascentista, abominaria as escolhas vicentinas. Acredito que em Gil Vicente temos um ponto de vista muito informado e o teatro de todo um tempo num mesmo palco. Proponho que seja esse o espírito do teatro vicentino e queria partir dessa ideia para pensar a encenação de João Pedro Vaz da Floresta de Enganos.
Creio que a encenação resolve habilmente a peça de Vicente, sem nos dar uma solução única ou definitiva, reconhecendo que é uma peça-problema. Para isso, experimenta e convoca todo o teatro do seu tempo, que é também o nosso tempo. Esclarece a peça e problematiza-a também: resolve cenas e deixa-nos a braços com um espetáculo que vive do desequilíbrio.
O espetáculo, com a floresta feita de cortinas, logo de teatro, é um desenvolvimento autoral único. Descobre a narração brechtiana, demonstrativa, no prólogo do Filósofo, assim como revela o teatro do absurdo nessa primeira cena com o Parvo atado ao pé. Para o público, não será coincidência que os mesmos dois atores tenham feito os protagonistas de À Espera de Godot naquele mesmo palco, há meses.
Encontramos máscaras e mais máscaras, literais e metafóricas: o cómico nas cenas do Mercador e do Doutor é de máscara (face dos atores, representação) para o público. Vemos a descoberta da fantasia nas figuras com máscaras de animais e na música de alaúde tocada ao vivo, sempre assumida (ou desmascarada), sempre ponto de partida de contracena. Temos explicitamente o teatro de máscara (quase só branca, quase só neutra) para representar o templo de Apolo. O lirismo emprestado na cena de Vénus, que pertence a outra peça, também é uma máscara. Essa sobreposição de cenas, em colagem, faz parte do nosso tempo, assim como a adaptação de fontes variadas fez parte da criação de muitas das peças vicentinas. Temos ainda, no exílio da princesa, drama tenso e difícil de assistir pelo longo silêncio na serra Mineia. Sentimos um sobressalto ao irmos do extremo da farsa (como caricatura, trabalho de máscara para o público) ao extremo da comédia vicentina (como parte séria, grave). Contudo, o sobressalto que resulta do movimento entre estes pontos é o próprio espírito do teatro vicentino.
A encenação de João Pedro Vaz tem o mesmo espírito da Floresta escrita por Vicente: o teatro de todo um tempo num mesmo palco. Absurdo, narrativo, sátira, máscara, cortinas, mistura. Com muitas escolhas, algumas delas de sobressalto, mas todas autorais. Encaro este espetáculo como uma Floresta de Teatro. Sempre me impressionou na Floresta de Vicente que cada personagem soubesse que estava a fazer teatro. Aqui, neste espetáculo, a encenação declara a cada momento, contracena, cortina, que está a fazer teatro.
Gil Vicente inventou muita coisa e grande parte do teatro português. João Pedro Vaz coloca todo o teatro dentro da peça de Vicente. Longe de ser pacífico, como todas as criações, é uma grande invenção e um grande elogio.
*Doutorando em Materialidades da Literatura (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), com uma tese sobre Gil Vicente em recriações modernas.
MANUAL DE LEITURA
Créditos
de Gil Vicente encenação João Pedro Vaz tradução dos versos castelhanos José Bento
cenografia e figurinos Sara Vieira Marques máscaras e assistência de encenação Gonçalo Fonseca
interpretação Afonso Santos, Hugo Paz, Joana Carvalho, João Melo, Lia Carvalho, Mário Santos, Rodrigo Santos e Ananda Miranda (alaúde)
produção Teatro Nacional São João
dur. aprox. 1:40 M/12 anos
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Espetáculo legendado em inglês
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Língua Gestual Portuguesa | 20 MAR Conversa com o Mestre | 3 ABR
O ator Hugo Paz integra o elenco no âmbito do programa de cooperação com o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde.
Sessões
Teatro São João
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