O Teatro Nacional São João, o teatro português e o teatro da palavra estão de luto. Deixou-nos ontem Rogério de Carvalho, talvez o mais independente, o mais irritantemente discreto e um dos mais admiráveis criadores do nosso teatro. Devemos-lhe, entre tantos outros espetáculos, o primeiro Genet deste Teatro Nacional, Os Negros, que aqui encenou em 2006 a convite de Ricardo Pais, um seu fervoroso admirador, alguém em quem reconhecia uma filiação, pois Rogério de Carvalho prolongava no nosso palco o compromisso pelo teatro de repertório, a paixão pela palavra, a atenção maníaca ao “dizer”, a sensibilidade ao visível e ao invisível. No elenco de Os Negros, pontificavam atores moçambicanos, angolanos, são-tomenses, cabo-verdianos e portugueses, obrigando-nos a infletir muitos dos nossos preconceitos normativos e a celebrar a língua portuguesa de hoje como uma transbordante herança polimórfica.
Rogério de Carvalho encarava todos os seus projetos não só na sua dimensão especificamente criativa, mas também formativa, como se cada espetáculo fosse também um estágio. Na cidade do Porto, foi professor na Academia Contemporânea do Espetáculo e assumiu durante largos anos a direção artística da companhia As Boas Raparigas…, com quem encenou Os Europeus, de Howard Barker, ou Music-Hall, de Jean-Luc Lagarce, espetáculos estreados e coproduzidos pelo Teatro Nacional São João.
Rogério de Carvalho nasceu em Angola, em 1936. Deixou-nos ontem, tinha 88 anos. Em 2019, escreveu no programa de sala de Rei Lear, de Shakespeare, espetáculo coproduzido pelo Ensemble – Sociedade de Atores e o Teatro Nacional São João: “O conhecimento do teatro nunca está acabado.” Uma frase que nos devolve por inteiro a sua inquietação, a sua humildade, a sua grandeza.
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22 de setembro de 2024