Antígona: eis um mito vindo da noite dos tempos, e uma tragédia grega com 2500 anos; e também uma peça de teatro encenada por Nuno Carinhas, no Teatro Nacional São João, em 2010; no instante em que escrevo, quase 10 anos depois, a tragédia de Sófocles continua urgente e absolutamente actual, sem sinal de envelhecimento. Passam os séculos, os milénios, e ecoa sempre a voz daquela jovem que dizia: “Não nasci para odiar, mas para amar.” Eis um texto que vem do mais remoto passado, que continua a subir à cena no século XXI, que decerto nos aguarda no futuro, onde quer que haja lei e revolta, prepotência, escândalo e coragem.
Antígonas: Omer Goldman, Malala Yousafzai, Marielle Franco, Saba Kord Afshari.
Lembro-me: o palco era ocupado por uma construção circular, interrompida por uma sequência de degraus – ágora enclausurante, ou talvez poço, vertigem do Hades, declínio inscrito no próprio espaço. Entravam Antígona e Ismena, e logo às primeiras palavras já era tudo irremediável: a ousadia, o sacrifício, mas também o medo e a recusa, a morte digna e a sobrevivência assustada. Creonte, Hémon, guardas e mensageiros, o próprio Tirésias – todos obedeciam a uma máquina rigorosa, uma máquina infernal, para usar uma expressão de Cocteau. Quanto a nós, espectadores, sabíamos que nada podia impedir o desfecho terrível; mas sabíamos também isto: que o texto de Sófocles nos obriga a pensar tudo outra vez, vez após vez: os argumentos do poder, as consequências da revolta, a responsabilidade de todas as partes quando as leis colidem, e eis-nos desamparados no instante da decisão inadiável, sem rede, sem solo firme. Num livro chamado Antígonas, George Steiner mostra que o debate aberto pela peça nunca mais foi esgotado: de cada vez que a tragédia sobe ao palco, os fundamentos do mundo voltam a ser interrogados.
Era esta a proposta de Nuno Carinhas: expor o poder, mostrar o que podem aqueles que têm a lei do seu lado; mas também o que pode aquela que só pode desobedecer. Vivemos hoje tempos que se definem, reza a doxa, pela ausência de alternativas, pelo pensamento único, por uma homogeneização globalizada dos comportamentos; uma frase popular e muito glosada diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, o fim do poder tal como o conhecemos, o fim das instituições e do statu quo. Sófocles, porém, afirma que qualquer lei pode ser desafiada. Claro, Antígona sabe que a insubordinação conduz ao sacrifício e à morte; mas o essencial é haver uma alternativa. E Creonte, que julga incarnar soberanamente a lei do mundo, descobre pelo contrário que não passa de uma peça condenada pelo destino.
Lembro-me: numa das últimas cenas – talvez mesmo a última – em que vemos Antígona, ela desce as escadas que cortam a enigmática forma circular do palco. Ela desce, degrau a degrau, a despedir-se da luz do dia. E de cada vez que pisa um novo degrau falha-lhe a voz; como acontece quando, às escuras, descemos escadas, e embatemos num patamar onde esperávamos um degrau, ou, mais violentamente, sentimos o vazio de um novo degrau onde contávamos com um patamar. Como a nossa voz falha, por um breve instante, no assombro daquele vácuo, assim a voz de Maria do Céu Ribeiro falhava, degrau a degrau, como quem caísse. Era quase nada, só uma tremura, ínfima cesura dentro da sílaba: mas naquele estalar da voz cabia de repente um medo profundo e humano, que de maneira nenhuma a faria voltar atrás, pedir misericórdia. Era um medo instintivo, irreprimível, que nascia do corpo, não da razão.
Era um medo íntimo, último tremor de quem sabe que vai morrer, e nunca Antígona foi mais real.
*Escritor.
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26-28 Março + 7-23 Abril 2010 Teatro Nacional São João